Morte de Tadeo Kulina: novas provas apontam tortura e negligĂȘncia

Tadeo Kulina chegou amarrado e inconsciente ao hospital, diz laudo

Investigação sobre morte do indígena Tadeo Kulina é reaberta após novas provas

Atendendo a um pedido da Defensoria PĂșblica do Estado do Amazonas (DPE-AM), o MinistĂ©rio PĂșblico do Estado do Amazonas (MPAM) desarquivou o inquĂ©rito que apurou a morte do indĂ­gena Tadeo Kulina, que foi encontrado morto em Manaus apĂłs desaparecer de uma maternidade pĂșblica em fevereiro de 2024.

Diante de novos indĂ­cios apontarem que ação humana pode ter contribuĂ­do com a morte do indĂ­gena de recente contato, o promotor FlĂĄvio Mota Morais Silveira determinou que, dentro de 90 dias, a PolĂ­cia Civil faça uma nova investigação e solicitou a realização de uma sĂ©rie de novas diligĂȘncias, como novos laudos e oitivas de testemunhas.

Conduzido por policiais militares, Tadeo deu entrada no Hospital e Pronto-Socorro JoĂŁo LĂșcio, na Zona Leste de Manaus, por volta das 17h do dia 6 de fevereiro de 2024. Conforme o histĂłrico de atendimento, ele chegou Ă  unidade de saĂșde desacordado, transportado em cadeira de rodas, apresentando sinais de agressĂŁo fĂ­sica, em estado gravĂ­ssimo.

Exames constataram graves lesÔes intracranianas. Ele não resistiu e acabou morrendo às 1h do dia 7, um dia antes de completar 34 anos de idade.

A causa da morte indicada no laudo necroscĂłpico foi hematoma subdural, fratura de base de crĂąnio e traumatismo cranioencefĂĄlico por instrumento contundente.

A PolĂ­cia Civil concluiu as investigaçÔes e opinou pelo encerramento do inquĂ©rito por inexistĂȘncia de indĂ­cios autoria e materialidade de crime de homicĂ­dio, apontando para a ocorrĂȘncia de morte acidental em razĂŁo de quedas sofridas pela vĂ­tima. O MPAM requisitou novas diligĂȘncias e depois decidiu arquivar o caso.

A famĂ­lia de Tadeo nĂŁo chegou a ser comunicada do arquivamento.

A Defensoria PĂșblica ingressou com o pedido junto ao MPAM representando os interesses da mĂŁe e de um irmĂŁo do indĂ­gena.

Novas provas e indĂ­cios de tortura

No pedido de desarquivamento encaminhado ao MPAM, os defensores pĂșblicos Daniele dos Santos Fernandes e JoĂŁo Gustavo Henriques de Morais Fonseca apresentaram novas provas, como a ficha de atendimento mĂ©dico-hospitalar, que nĂŁo consta nos autos do inquĂ©rito, que apontam sinais de agressĂŁo fĂ­sica e tortura contra a vĂ­tima, incompatĂ­veis com morte acidental.

O documento assinado por um mĂ©dico informa que, no momento do ingresso no hospital, Tadeo foi conduzido por policiais militares desacordado, transportado em cadeira de rodas, apresentando sinais de agressĂŁo fĂ­sica e tortura, com mĂŁos e pĂ©s amarrados e mĂșltiplos hematomas espalhados por diversas partes do corpo.

“O fato de a vĂ­tima ter sido conduzida ao hospital com pĂ©s e mĂŁos amarrados jamais foi mencionado no inquĂ©rito, tampouco que Tadeo chegou ao hospital jĂĄ em estado de inconsciĂȘncia”, destacam os defensores, integrantes do NĂșcleo Especializado de Defesa dos Direitos dos Povos IndĂ­genas e Comunidades Tradicionais da DPE-AM.

Os defensores afirmam que, nesse contexto, nĂŁo Ă© possĂ­vel concluir com segurança que as quedas que Tadeo sofreu antes de ser levado ao hospital – que foram registradas em um vĂ­deo de 30 segundos anexado ao inquĂ©rito – foram suficientes para resultar na morte dele, considerando que parte da dinĂąmica dos fatos permanece obscura.

“Ora, no momento do vĂ­deo, a vĂ­tima nĂŁo estava amarrada e nĂŁo Ă© possĂ­vel visualizar as vĂĄrias escoriaçÔes pelo corpo documentadas pela equipe mĂ©dica”, observam os defensores pĂșblicos.

Daniele Fernandes e JoĂŁo Gustavo Fonseca ressaltam que Ă© evidente que, em algum perĂ­odo entre as quedas e a chegada da vĂ­tima ao hospital, “ocorreram eventos de agressĂŁo e eventuais negligĂȘncias que nĂŁo foram investigados e que podem ter produzido, por si sĂłs, a morte da vĂ­tima, descaracterizando a morte acidental”.

Mais lacunas e repercussĂŁo nacional

O documento encaminhado pela Defensoria PĂșblica ao MPAM inclui ainda um apanhado da apuração jornalĂ­stica da Folha de S. Paulo publicada no podcast “Dois Mundos”. A reportagem em ĂĄudio deu repercussĂŁo nacional ao caso e tambĂ©m apresentou elementos que, na avaliação dos defensores, precisam de melhor esclarecimento.

Entrevistas feitas pelo podcast indicam que, tanto apĂłs as quedas quanto no momento em que os policiais abriram a viatura para liberar Tadeo na saĂ­da da delegacia, ele estava bem, “o que aparentemente contraria o depoimento dos policiais militares, segundo os quais notaram que Tadeo estaria passando mal quando foram liberĂĄ-lo”.

“Nesse aspecto, Ă© importante mencionar que nĂŁo hĂĄ nos autos do inquĂ©rito qualquer registro sobre o perĂ­odo em que Tadeo permaneceu trancado no camburĂŁo da viatura policial enquanto aguardava a lavratura do boletim de ocorrĂȘncia no 14Âș DIP, procedimento que nĂŁo foi realizado em razĂŁo da desistĂȘncia da responsĂĄvel pelo lava jato”, pontuam os defensores pĂșblicos.

Conforme os defensores, a cronologia dos fatos também necessita ser esclarecida no inquérito, uma vez que a responsåvel pelo lava jato declarou que por volta das 14h do dia 6 de fevereiro teria sido informada de que um homem havia caído da laje do estabelecimento e estaria bastante agressivo, motivo pelo qual acionou a Polícia Militar.

Entenda o caso de Tadeo Kulina

Indígena de recente contato do povo Madiha Kulina e não falante da língua portuguesa, Tadeo veio para Manaus acompanhar sua mulher, Ccorima Kulina, que teve complicaçÔes durante gestação.

Moradores da aldeia Macapå, na região do Médio Juruå, em Envira, a mais de 1.200 quilÎmetros de Manaus, eles nunca tinham deixado a região, mas Ccorima precisou ser removida por UTI aérea à capital para realização do parto.

Após a mulher ser internada na maternidade Ana Braga, Tadeo deixou o local e permaneceu desaparecido por oito dias até seu corpo ser encontrado no Instituto Médico Legal (IML).

Em seu deslocamento, horas antes de morrer, o indĂ­gena chegou a um lava jato localizado na avenida Autaz Mirim, onde teria sofrido as quedas, que foram registradas em vĂ­deo.

ContradiçÔes e questionamentos

Pessoas que estavam no lava jato relataram ao jornal Folha de S. Paulo que Tadeo chegou por volta das 14h. Segundo os relatos, ele estava transtornado e muito agressivo, motivo pelo qual resolveram chamar a PolĂ­cia Militar.

O relatĂłrio de ocorrĂȘncia registra que o chamado Ă  PM teria ocorrido Ă s 15h30.

“O que teria acontecido durante mais de uma hora e meia entre um evento e outro? Sabe-se que Tadeo deu entrada no hospital Ă s 16h55. Contudo, desconhece-se por quanto tempo permaneceu ferido e sem assistĂȘncia mĂ©dica no interior da viatura”, apontam Daniele Fernandes e JoĂŁo Gustavo Fonseca no documento encaminhado ao MPAM.

Os defensores tambĂ©m dizem que Ă© preciso esclarecer contradiçÔes entre os depoimentos das testemunhas da ocorrĂȘncia no lava jato. Uma delas contou que Tadeo teria entrado no estabelecimento, subido na mureta e se atirado da laje, sem ter brigado com ninguĂ©m ou proferido qualquer palavra. Outra disse que ela e outros funcionĂĄrios, apĂłs a queda, teriam tentado conter Tadeo devido ao seu comportamento agressivo e agitado, sem obter ĂȘxito.

Os policiais militares, por sua vez, em depoimentos idĂȘnticos entre si, disseram que Tadeo teria sido amarrado pela população e que teria agredido um lavador de carros. AlĂ©m disso, consta do relatĂłrio de ocorrĂȘncia que Tadeo portava uma faca.

A Defensoria PĂșblica demonstrou que os elementos presentes nos depoimentos dos policiais sĂŁo contraditĂłrios Ă s versĂ”es apresentadas pelas demais testemunhas, tanto aos investigadores quanto na entrevista Ă  Folha.

Conforme o pedido de desarquivamento, uma nova oitiva das testemunhas Ă© imprescindĂ­vel para esclarecimento “das contradiçÔes relacionadas aos horĂĄrios e Ă  dinĂąmica dos fatos no estabelecimento, Ă  existĂȘncia ou nĂŁo de contenção pela população”, bem como Ă  condição em que Tadeo se encontrava quando as testemunhas o viram pela Ășltima vez na viatura policial.

“Isso porque, na entrevista concedida ao referido podcast, a responsĂĄvel pelo lava jato afirma que Tadeo estava bem quando abriram a viatura, enquanto a ficha de atendimento do Hospital JoĂŁo LĂșcio registra que Tadeo chegou desacordado, amarrado e transportado em cadeira de rodas”, registra trecho do documento.

Segundo os defensores, Ă© necessĂĄrio investigar, inclusive, se houve negligĂȘncia no socorro da vĂ­tima que tenha contribuĂ­do para sua morte. “Afinal, a extensĂŁo das lesĂ”es apontadas no laudo necroscĂłpico evidencia a urgĂȘncia do atendimento mĂ©dico desde o momento em que foram produzidas”, apontam.

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