O “Mandato EAD”: Onde a Regra é para Todos, e o Precedente é para Alguns
Em um país onde o servidor público é perseguido por um relógio de ponto, onde o funcionário de repartição tem cada minuto de sua jornada fiscalizado e onde o absenteísmo é passível de corte de salário e até demissão, assistimos a mais um capítulo da velha e conhecida política de dois pesos e duas medidas. A trama em questão envolve o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e a criativa – para não dizer cínica – tese do “mandato EAD”.
A estratégia é tão simples quanto reveladora: aliados do clã bolsonarista movem céus e terra para emplacar Eduardo Bolsonaro como líder da minoria na Câmara. O cargo, pasmem, não é um mero posto político. Ele é a suposta chave mestra que abriria as portas do paraíso do trabalho remoto para o deputado, permitindo que ele “cumpra” seu mandato diretamente dos Estados Unidos. Tudo isso, é claro, amparado por um precedente de 2015, da era Eduardo Cunha – figura notória cujo currículo dispensa apresentações.
A justificativa técnica é uma coisa. A mensagem que ela passa é outra, completamente diferente. Enquanto o cidadão comum e o servidor concursado são obrigados a encarar o trânsito, o custo de vida e a rígida carga horária para receber seu salário no fim do mês, a elite política parece habitar um universo paralelo onde as regras são flexíveis e adaptáveis aos seus interesses pessoais.
A pergunta que não quer calar é: qual é o verdadeiro limite do trabalho remoto para um parlamentar? Um deputado não é um analista de sistemas que pode desempenhar suas funções de qualquer lugar do mundo com uma conexão de internet. Sua função é essencialmente presencial: é no plenário, nos corredores, nas comissões e no contato direto com outros pares e com a população que a política se faz. A votação é apenas o ato final de um processo de construção de relações e consensus que exige presença. Liderar um bloco partidário, atividade que demanda articulação constante e negociação cara a cara, torna a ideia de uma “liderança à distância” ainda mais absurda.
Ao recorrar ao precedente de Cunha, a manobra busca uma roupagem de legalidade. Mas a legalidade não deve ser confundida com legitimidade. Usar como escudo uma decisão tomada por um presidente da Câmara posteriormente preso por corrupção não é exatamente um argumento de peso moral. É, na verdade, a prova de que o sistema é capaz de se autorreformar para beneficiar seus próprios membros, mantendo intocadas as regras que aplica aos demais.
O que está em jogo aqui vai muito além da permanência de um único parlamentar. É a própria credibilidade das instituições e o princípio básico da isonomia. Se um deputado pode “trabalhar” de outro continente, por que o professor não pode dar aula de praia? Por que o médico não pode operar de casa? A resposta é óbvia: porque algumas funções exigem presença. E a de parlamentar, sobretudo a de líder partidário, é uma delas.
O “Mandato EAD” de Eduardo Bolsonaro é um sintoma de uma doença que corrói a política brasileira: a sensação de impunidade e de privilégio de uma casta que se vê acima das regras que ela mesma cria. É a celebração do “jeitinho” elevado à potência máxima. Enquanto o Brasil real se desdobra para cumprir suas obrigações, o Brasil oficial nos apresenta mais um episódio de ficção.