Um gesto de reconciliação tornou-se símbolo da tragédia que assombra milhares de brasileiras. Em cenas gravadas por câmeras de segurança, Maria Katiane da Silva, 25 anos, tenta abraçar o marido após ser espancada no estacionamento. Minutos depois, seu corpo era arremessado do 10º andar.
SÃO PAULO – Na madrugada do último dia 29 de novembro, o condomínio onde vivia Maria Katiane da Silva, 25 anos, na zona sul da capital paulista, tornou-se palco de um crime que sintetiza a epidemia de violência doméstica no Brasil. Câmeras de segurança registraram os últimos momentos de vida da jovem, que, mesmo após uma brutal agressão no estacionamento, sobe ao elevador com o marido, Alex Leandro Bispo dos Santos, 40, e tenta acalmá-lo com um abraço. A cena, que poderia ser um momento de reconciliação, transformou-se em prelúdio de uma tragédia anunciada.
A CRONOLOGIA DA MORTE
Menos de cinco minutos separam a primeira agressão – registrada no estacionamento – do momento em que Alex retorna sozinho ao elevador, coloca as mãos na cabeça e se senta no chão, em aparente choque. Nesse intervalo, Maria Katiane foi arrastada pelo pescoço para fora do elevador no 10º andar e, em circunstâncias ainda sob investigação, foi arremessada da altura. A Polícia Militar foi acionada pelo próprio suspeito, que inicialmente alegou que a esposa teria caído após um “grito e um forte barulho”. A versão desmoronou diante das imagens de segurança.
O RETRATO DO AGRESSOR E A VÍTIMA NAS REDES
Em contraste brutal com a violência do crime, o perfil de Maria Katiane nas redes sociais exibia fotos ao lado do marido, acompanhadas de legadas como “Eu te amo”. As publicações, agora transformadas em memorial digital, revelam a complexidade dos relacionamentos abusivos, onde afeto e violência coexistem em silêncio. Alex Leandro foi preso na última terça-feira (10/12) e responde por feminicídio consumado na 89ª Delegacia de Polícia (Jardim Taboão). As investigações seguem para apurar detalhes do trajeto dentro do apartamento.
UM RETRATO DA ESCALADA
A morte de Maria Katiane não é um caso isolado. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, apenas no estado de São Paulo, os registros de feminicídio aumentaram 8,7% no último ano. Nacionalmente, uma mulher é vítima de agressão física a cada 4 minutos, e uma é assassinada a cada 7 horas, em média. Especialistas apontam que a subnotificação ainda é alta, e casos como o de Maria – onde a vítima tentou, até o último instante, apaziguar o agressor – ilustram a dificuldade de romper o ciclo de violência.
“Estamos diante de uma pandemia dentro da pandemia. A violência doméstica não diminuiu com o fim do isolamento social; ela se adaptou, tornou-se mais silenciosa e, muitas vezes, mais letal”, analisa a Dra. Camila Silva, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência de Gênero da USP.
O QUE FALTA?
Apesar da existência da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e da tipificação do feminicídio (Lei 13.104/2015), defensores dos direitos das mulheres apontam falhas estruturais:
- Falta de implementação efetiva das medidas protetivas;
- Despreparo de partes do sistema judiciário e policial para acolher vítimas;
- Falta de abrigos e redes de apoio psicológico e financeiro;
- Cultura machista que naturaliza a posse do homem sobre a mulher.
“O abraço de Maria Katiane no elevador é a metáfora perfeita do desespero de quem tenta, até o último segundo, salvar não apenas a relação, mas a própria vida. A sociedade precisa entender: feminicídio é apenas o estágio final de uma violência que começa com controle, humilhação e agressões ‘pequenas’”, afirma a ativista Maíra Figueiredo, da ONG Vivas.
Enquanto a investigação segue, a família de Maria Katiane prepara seu enterro, marcado para esta sexta-feira, em São Paulo. Em suas redes sociais, uma prima escreveu: “Ela merecia a vida, não uma manchete”. Uma vida interrompida que se soma a um número crescente – e inaceitável – de histórias truncadas pela violência de gênero.