Uma licitação de R$ 947 mil para a construção de cinco escolas de madeira em comunidades ribeirinhas do Amazonas é alvo de denúncia do Ministério Público por superfaturamento, indícios de fraude em licitação e possível conluio entre gestão de Ruan Mattos e empresa.
O Contrato e a Denúncia
Em agosto de 2024, a Prefeitura de Envira (AM) publicou o Edital de Concorrência nº 002/2024 para contratar uma empresa para a "Construção de Escolas na Zona Rural do Município de Envira". O valor total estimado era de R$ 947.366,00, com prazo de execução de apenas 60 dias.
O objeto era a construção de cinco escolas de madeira, uma em cada uma das seguintes comunidades: Marajá - Rio Baixo Tarauacá; Três Bocas - Rio Baixo Tarauacá; Foz do Envira - Rio Alto Tarauacá; Santa Catarina - Rio Alto Tarauacá; Aracajú - Rio Alto Tarauacá.
Três Bocas - Rio Baixo Tarauacá. Fonte: SIMEC - Transparência Pública - Obras FNDE |
No entanto, denúncia encaminhada ao Ministério Público (MP) aponta que o valor estaria possivelmente superfaturado em até 400% e que as escolas simplesmente nunca foram construídas, caracterizando um grave caso de desvio de recursos públicos, possivelmente ligado a fraudes licitatórias.
As Irregularidades Identificadas na Planilha e no Edital
A análise da planilha orçamentária (que serviu de base para a licitação) e do edital revela uma possível série de irregularidades graves:
1. Superfaturamento Grosseiro
A planilha detalha os custos para construir uma única escola (item 1) no valor de R$ 189.473,20. Esse mesmo valor é simplesmente multiplicado por 5 para chegar ao total de R$ 947.366,00, sem qualquer critério técnico que justifique custos idênticos para comunidades e terrenos diferentes.
Item suspeito: O valor de R$ 62.106,46 apenas para o piso de madeira de uma única escola (item 1.5.1) é absolutamente incompatível com o mercado regional para uma estrutura simples e rural.
BDI Inflado: O BDI (Bonificações e Despesas Indiretas) aplicado é de 24,35%, valor considerado alto para o tipo de obra, especialmente em um município com isenções tributárias.
2. Projeto "Ctrl+C + Ctrl+V" e Falta de Projetos Básicos
O edital exige, como parte integrante, os "Projetos de Engenharia completos" (item 1.4, alínea a). No entanto, a planilha orçamentária é uma cópia idêntica para as cinco escolas, o que é tecnicamente impossível. Cada terreno possui características topográficas, fundações e acessos diferentes. A ausência de projetos individualizados sugere que a licitação foi aberta sem o devido planejamento técnico, o que é ilegal.
3. Indícios de "Direcionamento" ou "Fachada"
O edital (item 4.6) veda expressamente a formação de consórcios entre empresas. Essa é uma cláusula atípica que restringe artificialmente a concorrência, beneficiando empresas menores ou específicas que já teriam conhecimento prévio da manobra.
4. Inexequibilidade da Proposta Vencedora
O próprio edital (item 8.2.3) estabelece que serão consideradas "inexequíveis" propostas com valor inferior a 75% do orçamento da administração (ou seja, abaixo de R$ 710.524,50). Essa cláusula impede a verdadeira competição e garante que apenas propostas próximas do valor superfaturado original sejam aceitas, anulando o princípio da isonomia.
5. Risco de Fraude na Execução
O prazo de execução de 60 dias para construir cinco escolas em localidades de difícil acesso na Amazônia é irrealista. Isso indica que a prefeitura pode já ter ciência de que a obra não será realizada ou que será realizada de forma extremamente precária, apenas para justificar o pagamento.
ACESSE A PLANILHA DE CONSTRUÇÃO DE ESCOLAS NA ZONA RURAL DO MUNICÍPIO DE ENVIRA
Possíveis Crimes Apontados
Com base nas irregularidades, configuram-se indícios dos seguintes crimes e infrações:
- Superfaturamento (Art. 1º, § 2º, da Lei 8.666/93 - agora na Lei 14.133/21): Cobrança de preços visivelmente superiores aos de mercado.
- Fraude à Licitação (Art. 4º, Lei 8.666/93): Edital com cláusulas restritivas e planejamento fraudulento para direcionar a contratação.
- Dispensa Ilegal de Licitação (Indireta): A contratação sem projeto básico configura dispensa indevida do procedimento licitatório formal.
- Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92):
- Enriquecimento ilícito (Art. 9º): Se servidores se beneficiarem do esquema.
- Lesão ao erário (Art. 10): Prejuízo ao patrimônio público pelo pagamento excessivo por obra não executada.
- Violação aos princípios da administração: Principalmente os da legalidade, impessoalidade e moralidade.
- Crime contra a Ordem Tributária e Relação de Consumo (Lei 8.137/90): Se comprovada a emissão de notas fiscais falsas para uma obra inexistente.
Os Envolvidos
Responsável Técnico: A planilha foi assinada pela Eng. Civil Tainã Nascimento Chaves (CREA 32291-AM), que se responsabilizou tecnicamente pelo orçamento superfaturado.
Prefeitura de Envira: A gestão municipal, por meio da Secretaria Municipal de Educação, é a ordenadora da despesa e responsável final pela condução do processo.
Empresa Contratada: HRS Arquitetura e Instalações LTDA é o elo central para onde os recursos foram destinados.
Próximos Passos e Pedido do MP
O Ministério Público do Amazonas (MP-AM) deve instaurar um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) e um Inquérito Civil Público (ICP) para:
- Identificar a empresa contratada e seus sócios.
- Rastrear a movimentação financeira dos recursos repassados.
- Apurar a responsabilidade técnica da engenheira que assinou a planilha.
- Investigar a conduta dos servidores públicos envolvidos na elaboração do edital e na fiscalização da obra (ou da falta dela).
- Solicitar à Justiça o bloqueio de bens dos investigados para garantir o eventual ressarcimento aos cofres públicos.
O MP também pode recomendar imediatamente a suspensão do contrato e a abertura de Processo Administrativo Disciplinar contra os servidores envolvidos na Prefeitura de Envira.